Após quase um século de silêncio desde o Quebra de Xangô, movimento cultural volta a ocupar as ruas
Alagoas vive um momento histórico nesta sexta-feira (1), ao celebrar, pela primeira vez, o Dia Nacional do Maracatu, uma conquista que vai muito além do reconhecimento oficial. A data, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2024, representa o renascimento de uma manifestação cultural silenciada por quase cem anos após o episódio do Quebra de Xangô, em 1912.
A secretária de Estado da Cultura e Economia Criativa, Mellina Freitas, celebrou o reconhecimento.
“O maracatu é um símbolo de resistência e da riqueza da nossa herança afro-brasileira. Uma linguagem ancestral que resistiu ao apagamento histórico e que agora reencontra seu lugar na paisagem cultural alagoana. Reconhecer e fortalecer essa expressão é um compromisso com a memória coletiva, com a justiça cultural e com a valorização das matrizes africanas que moldam a identidade do nosso povo”, afirmou a secretária.
Ela também reforçou a importância do reconhecimento legal. “A institucionalização dessa data fortalece o compromisso do Estado com a valorização da cultura popular e com os artistas que mantêm viva essa tradição”, destacou a gestora.
A retomada concreta em 2007
A retomada do maracatu em Alagoas ocorreu em março/abril de 2007, quando o percussionista Wilson Santos ministrou uma oficina de maracatu no Centro de Belas Artes de Alagoas (Cenarte), equipamento público mantido pelo Governo de Alagoas e administrado pela Secretaria de Estado da Cultura e Economia Criativa (Secult). A ação fazia parte de um ciclo de formações voltadas à valorização das expressões afro-brasileiras no estado.
A resposta do público foi imediata. Participantes da oficina, em sua maioria jovens de comunidades periféricas, artistas independentes e estudantes, decidiram manter os encontros e continuar os estudos musicais. A partir dessa mobilização espontânea, se formou um núcleo de prática regular.
Em 21 de abril de 2007, foi fundado oficialmente o Grupo Percussivo Maracatu Baque Alagoano, se tornando o primeiro grupo do gênero criado em Alagoas após quase um século de invisibilidade. O grupo se tornou símbolo da reconexão cultural com tradições negras apagadas historicamente e catalisador de novos grupos, oficinas e ações culturais voltadas à cultura popular afro-brasileira.
Hoje, pelo menos dez grupos estão ativos em Alagoas, como o Yá Dandara, primeiro exclusivamente feminino, e o coletivo Sankofa, que mistura maracatu com outras sonoridades afro-brasileiras e expressões da cultura popular local, com base no bairro do Vergel do Lago, em Maceió.
“O dia de hoje é emblemático, pois mais que o som dos tambores, a data reverencia um marco histórico de resistência e de renascimento cultural. Antes do Quebra, o maracatu era expressão viva das comunidades periféricas e dos terreiros de Xangô, entrelaçado à religiosidade afro-brasileira e à identidade negra. E isso nos foi calado. Então, hoje celebramos a retomada da memória, da dignidade e da ancestralidade”, afirma Wilson Santos.
“Celebrar o Dia Nacional do Maracatu em Alagoas é mais que uma festa, é um ato de resistência e de cura coletiva. Depois de quase um século de silêncio imposto pelo Quebra de Xangô, ver os tambores ecoando novamente pelas ruas de Jaraguá é como ouvir a ancestralidade gritar que ainda estamos aqui, falou a mestre do Maracatu Yà Dandara, Dani Lins.
“O Maracatu Feminino Yá Dandara nasceu desse renascimento, como um espaço onde as mulheres não apenas tocam, mas lideram, criam e transformam. Cada baque é um chamado à memória, à dignidade e à força das mulheres negras que sustentam essa tradição com corpo, alma e coragem. Hoje, o maracatu em Alagoas também é feminino, é plural, é vivo, e é nosso”, destaca Dani Lins.
Raízes históricas em Alagoas
Embora o maracatu seja comumente associado a Pernambuco, onde surgiu formalmente no século XVIII, a tradição também tem raízes documentadas em Alagoas, que compartilhou essa tradição durante o período em que os dois estados fizeram parte da mesma capitania.
Desde o período colonial, há registros da manifestação no estado, tanto no carnaval de rua quanto nos terreiros de Xangô.
A continuidade dessas expressões culturais, no entanto, foi violentamente interrompida com o Quebra de Xangô, em 1º de fevereiro de 1912. O episódio marcou uma ruptura drástica na presença pública das religiões de matriz africana em Alagoas, como também desarticulou práticas artísticas e espirituais a elas vinculadas — entre elas, o maracatu.
Segundo o Consultor Artístico e Cultural do Maracatu Baque Alagoano, Kiko Cavalcanti, a celebração do primeiro Dia Nacional do Maracatu representa um marco profundamente simbólico e cultural para o estado.
“Um estado que, embora historicamente tenha sido um importante território de expressão dos maracatus na região Nordeste, viu-se silenciado por décadas em função de violências e apagamentos promovidos pelo racismo religioso e institucional”, disse.
Kiko relembra que, antes do Quebra de Xangô, Alagoas já era berço de grupos tradicionais como Cambinda do Porto e Cambinda Velha. “Essas manifestações estavam diretamente ligadas às casas de matriz africana e aos territórios sagrados do povo de santo. No entanto, com a brutal repressão empreendida por autoridades e setores conservadores da sociedade à época, inúmeras casas foram invadidas, destruídas e seus líderes perseguidos”, destacou.
“Esse ataque sistemático não apenas interrompeu os cultos afro-brasileiros, como também comprometeu a continuidade de expressões culturais associadas a essas tradições, como o próprio maracatu”, completou.
Apesar da repressão, a tradição não desapareceu completamente. De acordo com Kiko, houve um segundo momento de resistência e memória entre as décadas de 1950 e 1960, conforme registrado pelo historiador Théo Brandão. “Suas pesquisas apontam a existência de práticas e celebrações que, embora mais discretas e fragmentadas, mantinham vivo o elo com o passado ancestral do maracatu em Alagoas. Esse período funcionou como um elo de memória, ainda que fragilizado, entre os tempos de proibição e a retomada recente”, falou.
O terceiro e atual ciclo de revalorização do maracatu no estado teve início em 2007, com a oficina ministrada pelo percussionista Wilson Santos e que culminou na criação do Maracatu Baque Alagoano.
“Desde então, essa iniciativa tem sido fundamental na reconstrução do maracatu como expressão viva da cultura popular alagoana. O Baque Alagoano tem promovido oficinas, apresentações, intercâmbios e festivais que não apenas disseminam o ritmo e a estética do maracatu de baque virado, mas também fortalecem a identidade negra, a memória ancestral e o respeito às tradições afro-brasileiras”, reforçou Kiko.
O Baque Alagoano se consolidou como parte de um movimento político-cultural de reexistência. Sua trajetória, marcada por ações formativas, parcerias e articulações com outros coletivos, contribuiu para o surgimento de novos grupos e práticas em diversas comunidades alagoanas.
“Por isso, o reconhecimento nacional do maracatu como patrimônio imaterial, celebrado agora em uma data oficial, tem um peso histórico inestimável para quem esteve envolvido desde o início da retomada em Alagoas. Trata-se de uma reparação simbólica, uma vitória da memória sobre o esquecimento, da resistência sobre o silenciamento, da cultura viva sobre os escombros da intolerância. Celebrar o Dia Nacional do Maracatu, para nós, é celebrar a vida que insiste, o tambor que não se cala, a força ancestral que se reinventa e, sobretudo, afirmar que Alagoas nunca deixou de ser terra de maracatu”, finalizou.
“O maracatu ressurgiu no estado, definitivamente, como símbolo da força ancestral do povo alagoano. Esse patrimônio cultural brasileiro está nas ruas, hoje, como expressão de resistência, arte e espiritualidade, reafirmando o papel da cultura popular como instrumento de transformação social”, conclui Wilson.
E hoje, os tambores batem mais alto, para serem ouvidos por quem nunca pôde escutar.
Fonte: Agência Alagoas
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